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10 novembro, 2009

POESIA TODO DIA

FERREIRA GULLAR (trecho do POEMA SUJO)


Muitos
muitos dias há num dia só
porque as coisas mesmas
os compõem
com sua carne (ou ferro
que nome tenha essa
matéria-tempo
suja ou
não)
os compõem
nos silêncios aparentes ou grossos
como colchas de flanela
ou água vertiginosamente imóvel
como
na quinta dos Medeiros, no poço
da quinta

coberto pela sombra quase pânica
das árvores
de galhos que subiam mudos
como enigmas
tudo parado
feito uma noite verde ou vegetal
e de água
muito embora em cima das árvores
por cima
lá no alto
resvalando seu costado luminoso nas folhas
passasse o dia (o século
XX)
e era dia
como era dia aquele
dia
na sala de nossa casa
a mesa com a toalha as cadeiras o
assoalho muito usado
e o riso claro de Lucinha se embalando na rede
com a morte já misturada
na garganta
sem que ninguém soubesse
- e não importa -
que eu debruçado no parapeito do alpendre
via a terra preta do quintal
e a galinha ciscando e bicando
uma barata entre plantas
e neste caso um dia-dois
o de dentro e o de fora
da sala
um às minhas costas o outro
diante dos olhos
vazando um no outro
através de meu corpo
dias que se vazam agora ambos em pleno coração
de Buenos Aires
às quatro horas desta tarde
de 22 de maio de 1975
trinta anos depois

2 comentários:

claudio rodrigues disse...

JUVENAL, lindo o teu comentário lá no meu blog. Obrigado mesmo. E chego aqui de volta, encontro meu querido conterrâneo Gullar. Maravilha de poeta. Um grande abraço do Cláudio, meu palhaço querido.

marcos assis disse...

um dos livros que mais me marcou na vida e na poesia!!!