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25 janeiro, 2010

A PESTE

Todos os acontecimentos são, de certa forma, curiosos, sabem disso os cronistas – consagrados ou não. O velho [Rubem]Braga retirou crônicas célebres de fatos bastante corriqueiros – um homem nadando no mar, uma mulher na praia, um passarinho que o visitava, outro que sujou a roupa do conde... Tudo são temas para crônicas.
Em minha cidade – como em qualquer outra – os fatos devem ser observados apenas como aquilo que são: os fatos. Banais ou inesperados, cotidianos ou extraordinários, corriqueiros ou surpreendentes. Os fatos são apenas os fatos. Vamos a eles.

Alguns se lembrarão de que, numa manhã do dia 16 de abril, o doutor Bernard Rieux topou com um rato morto ao sair do consultório. Depois de afastá-lo com o pé e tratar o fato com indiferença, pensou que aquele não era um lugar devido para um rato morto e retornou para avisar ao porteiro. O velho Michel foi categórico ao afirmar que não havia ratos no prédio; só podia se tratar, pois, de uma brincadeira. Brincadeira ou não, o fato é que o rato estava lá.
À noite, ao entrar em casa, Rieux vê surgir do fundo do corredor um rato enorme, trôpego e com o pelo molhado. O bicho corre até ele, estrebucha, verte sangue pela boca e morre.
No dia seguinte, o porteiro para o médico e diz que são gracejadores de mau gosto que colocaram três ratos mortos no meio do corredor. O médico percebe, então, que algo está errado. No subúrbio onde visitará seus clientes, conta mais de uma dúzia de ratos jogados sobre restos e lixos.

Alguns se lembrarão de que os fatos relatados acima compõem, na verdade, o início de A PESTE, de Albert Camus, um dos mais belos e contundentes livros escritos no século passado. Os ratos mortos nas ruas de Oran são o prenúncio do terrível mal que se abaterá sobre a cidade – a peste – e que deixará expostas todas as mazelas da sociedade humana. Oran é o mundo reduzido. O mundo num momento extremo, com tudo que ele tem de mais belo e de mais terrível. E neste mundo, os homens.
Por que fui me lembrar de Camus e sua, talvez, obra máxima? É que hoje, voltando para casa de uma caminhada matinal pela cidade, topei com enorme rato morto.
E isto é tudo. Um fato que, se não é corriqueiro, também não é tão extraordinário assim. Os ratos vivem sob nossos pés, lotando os bueiros e esgotos. Enquanto dormimos, enquanto comemos, enquanto andamos, falamos, amamos e brigamos, estão lá, escondidos. Eventualmente saem de seus esconderijos e sobem para nossas ruas. E como tudo que vive, um dia morrem, estejam eles nos subterrâneos ou à flor das ruas. Portanto, um rato morto na calçada não passa de um fato urbano, como tantos outros.
Mas eu, sempre que vir um deles, me lembrarei do dr. Rieux e da Oran de Camus. E os ratos mortos me farão pensar em nós, homens, amontoados em nossas Orans, mais ou menos empesteadas, com todas as nossas mazelas. E olhando para o rato morto, eu me lembrarei, como Rieux no fim de sua narrativa, de “que há nos homens mais coisas a admirar a desprezar”

E isto é tudo.

Um comentário:

Joubert Amaral disse...

Gostei demais do texto meu amigo.
Vou inclusive Retwittalo no twitter.

Por sinal, aqui em Belo Horizonte quando estou em um ônibus lotado, em um dia de chuva e transito parado, penso apenas no que estamos nos transformando.

Acho que em um monte de ratos amontoados.

Saudades meu amigo... quando vamos tomar aquela cerveja em vossa residência?