No fim dos anos 1980 mantive uma interessante correspondência com o poeta Márcio Almeida. Entusiasta de agitações culturais e de escritores emergentes, Márcio me “adotou” como um de seus pupilos. Presenteou-me com livros (seus e de outros importantes nomes do cenário literário), colocou-me em contato com vários escritores, comentou poemas, criticando excessos e orientando caminhos. Abriu minha cabeça (ou pouco que alguém conseguiria).
E em 1988 acabei vencendo um concurso literário com um poema. Com isso, fui até BH conhecer pessoalmente o poeta e entrevistá-lo para o jornal A Semana. Na verdade, durante a ótima entrevista, fui apenas um tímido figurante. Quem de fato fez a entrevista foi o Cuca, o meu grande amigo Otávio Paiva. Eu, apesar de não ser um jovenzinho, era inocente como uma virgem criada em mosteiro medieval. Não entendia quase nada de história da literatura, menos ainda de teoria literária. E olha que eu já havia feito pelo menos uns dois período de um curso de Letras. Acho até que era por isso mesmo que eu não sabia nada sobre essas coisas.
Naquela ocasião, Márcio nos serviu um delicioso peixe.O que mais me impressionou na visita feita à casa do poeta foi ver que um escritor, um poeta era, afinal, um ser humano completamente igual aos outros. A imagem de alguém que vivia num mundo à parte, afastado do cotidiano, desapareceu. Durante o delicioso almoço, conversamos sobre banalidades, sobre as coisas mais simples da vida.
Encontrei o Márcio várias vezes naqueles anos, aqui em Divinópolis, na sua Oliveira e noutros eventos e encontros de poetas que ele sempre promovia ou para os quais era convidado. Foi uma época especial para mim.
Depois, por diversos motivos pessoais, acabei perdendo o contato com esse amigo. E fiquei anos somente “ouvindo falar” ou falando dele. Encontrava seu nome em diversos textos, poemas seus em revistas e publicações literárias, enfim: Márcio Almeida não perdia o pique e sempre mantinha a chama acesa. E esses verbos aí no passado estão errados: Márcio Almeida não PERDE o pique e sempre MANTÉM a chama acesa.
Outro dia chego em casa e ouço sua voz na secretária eletrônica. Me “intimava” a reaparecer e me “obrigava” a entrar em contato. Demorou um pouco (eu sou sempre muito lento, muito preguiçoso), mas consegui encontrá-lo em Cronópios. E trocamos alguns emails.
Pra quem não conhece a verve verbal desse “assassigno”, aí vão alguns textos de Márcio Almeida, este “assassigno” do poesismo sentimentalóide:
SOLO
É COMO SE O POEMA
TE EXIGISSE SER CRUEL,
COMO SE CRU E EM CENA
FOSSE SÓ TEU O PAPEL
VISCERAL, PLENO E HIENA,
ÚNICO, CLARO, FEL,
CULPADO PELA PENA
A DECIFRAR BABEL.
COMO CERTO DE NADA
DISPENSASSE O POEMA
TODA EUSCRITA-SALADA
DE TUAS LOAS E SEMAS.
TE OBRIGASSE A RUPTURA,
SURPREENDER A EMOÇÃO,
COMO A POESIA PURA
TE USASSE DE SABÃO.
COMO O POEMA-BOX
DESSE LIÇÃO SEM LOURO:
TODA IDÉIA É XEROX
A MAIS NOVA, NO SORO.
COMO, E COMO! O POEMA
NEM TE FIZESSE EXISTIR
REAUTOR DE REFALENAS
E UTOPÍAS SEM PORVIR,
TEORIAS QUE TRANSLUSTRAM
TEU ESPELHO SEM POLIR,
QUE ADJETIVOS NÃO FRUSTRAM,
SIMPLESMENTE, TE EXCLUIR.
COMO SE CADA POEMA
PREGASSE NÃO POETAR,
TE RECUASSE A SENHA
DA TUA ILUSÃO E CANTAR.
E TE CORTASSE A LÍNGUA,
MOSTRASSE O DEJÁ DITO
COM RIMA RICA E À MÍNGUA,
PÉS DE VINHO OU MALDITOS.
COMO TODO POEMA
A REPETIR AO POVO:
CADA VEZ TUA PRENHA
TORNA MAIS CHOCO O OVO.
COMO CANTO SEM EGO
L’ASCHIATE O VÃO DO INFERNO,
TE AFIRMASSE MAIS CEGO
COM TEU VENENO TERNO.
COMO SE AO PRÓPRIO BEM
POETA FOSSE ASSASSIGNO
DE FALAS E SEUS REFÉNS,
E, EM SILÊNCIO, MAIS DIGNO.
CAVALGADO
No campo semântico
um prefixo eqüino
pasta
com seu sufixo bovino
VERBETE
O homem é o único que desaprende lições de rugas,
o único que tem arsenais de morte contra sua espécie,
o único que depreda, saqueia, estupra e morre em fuga,
o único que troca o homem por máquinas, e se estarrece.
O homem é o seu absurdo, sua facção de pânico e medo,
sua própria falência universal, seu azar de berço,
mais é muito mais forte que o temor de um segredo,
muito mais insumo que só a fé que ara um terço.
É sua própria confusão, seu vender-se ou alugar-se,
sua cotação em baixa, baixo astral, supimpas fossas.
O homem é coisa danada que não vai vingar se
rejeitar por futurias inconhas de sua mão e roça.
O homem é o seu emprego, sua fome criminosa e cheque,
pretexto e conveniência, o homem é falsa previsão.
Ele somos o que, quando sonha, faz jogar de beque
a catimbar o quanto pode pra não parar o coração.
Um grande abraço, Márcio. Evoé, Almeida!
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